terça-feira, 4 de agosto de 2009

À teia

As mãos cansadas de Henrique procuraram o abajur como se ali, naquele espaço soterrado por sombras e pó, uma luz lhe trouxesse diversão. Não que ele acreditasse que num sótão sem vida estivesse a explicação para suas constantes crises de solidão, mas de alguma maneira ele ao menos se divertia observando generosas teias de aranha espalhadas pelo local.

Depois de tropeçar no último degrau, Henrique sentiu a adrenalina que o corpo injetara para lhe avisar do susto. Enfim se animara com algo. Estava regredindo alguns anos graças ao ânimo que lhe empurrava para garimpar livros e recordações naquele cemitério particular.

Após olhar por horas a fio um álbum de fotos familiares e com isso engolir em seco pensando em como não recebia mais sobrinhos, filhos e irmãos, Henrique olhou diretamente para a estante que se erguia a possíveis dois metros. Dedicou uma quase-reverência à teia que brilhava à sua frente. e em seguida alcançou sua prateleira e finalmente coletou um livro alaranjado que tanto lhe chamara atenção desde que chegara ali.

A edição de A besta humana estava gasta, mas o que vinha à sua memória tinha cheiro de novo. E foi folheando as páginas amareladas que Henrique encontrou um bilhete preservado do mundo e do tempo. Dobrado três vezes, pequeno, simpático. A boca secou quando a letra cursiva se abriu novamente aos seus olhos. Ali estava uma parte de Sílvia, viva, pulsante. Um telefone ao final. Nem lhe passou pela cabeça que os anos haviam afastado os dois jovens e agora cada qual com um parceiro, envelhecia distante de qualquer promessa ingênua de outrora.

Parecia impossível que àquela altura do campeonato alguém atendesse Henrique, mas pelo bem ou pelo mal, uma voz surgiu do outro lado, doce. Henrique demorou um tempo para responder, mas depois perguntou por Sílvia. Ao ser atingido por um inexplicável "É ela", o velho congelou a expressão e desligou o telefone, rindo sozinho e saboreando aquela voz que embora não tivesse soado familiar, também tinha cheiro de novo.