domingo, 10 de janeiro de 2010

Casa de praia

A casa de praia guardava um certo ar de liberdade que volta e meia assombrava Sílvia. E ali estava ela, sentada na varanda, rodeada de amigos de idênticos 17 anos, sozinha de pensamento.

Não era por cansaço que agora se negava a ir à praia com todos. Simplesmente estava "tranquila", disse aos decepcionados garotos que rumaram ao mar cheios de hormônios e alegria.

Sílvia ficou mirando a sempre silenciosa casa da frente. Vultos lhe indicaram que o morador passava pela janela. Ele agora não era apenas uma sombra. Um corpo sólido e atraente de pôs na janela, sorrindo para a garota, que estremeceu. O homem fixou o olhar do outro lado da rua e bebeu um gole de cerveja. Os dois observaram-se por longos minutos num quase duelo de pensamentos. Até que o homem, que devia ter o dobro da idade de Sílvia,pareceu cansar-se do joguete e desapareceu pra dentro de casa.

A menina ainda ficou um tempo imóvel, como se a inércia lhe conservasse a imagem do homem lhe sorrindo, na janela. Levantou-se, e caminhou para dentro de sua casa de praia, que a essa altura cheirava a risco e transformação.

Abriu o armário onde sabia que os meninos haviam mal-escondido a bebida. Olhou para a garrafa com líquido transparente e pegou o vidro. Colocou-o em cima da mesa, certificou-se que a pota estava fechada e ficou paralisada por alguns instantes. As borboletas no estômago lhe empurraram e Sílvia entornou a garrafa ignorando seu paladar sensível. Continuou firme, bebendo em um só gole uma quantidade mágica de transgressão.

Colocou a garrafa na mesa e andou incerta. Sentia uma vertigem física que lhe bagunçava os pensamentos. Podia até voar, não fossem as cadeiras que pareciam barrar sua tentativa de ir até a varanda. Mas a vontade de sentir qualquer vento que fosse no rosto era mais forte. Sílvia deslizou sabe-se lá como e alcançou a porta. Ao girar a maçaneta, parecia ter adquirido um passaporte para outra dimensão, essa sim livre de medos e impossibilidades.

Sorriu emocionada quando pisou na parte externa na casa. Seus olhos marejados procuraram a janela do vizinho agora menos estranho. Levemente embaçada, a vista foi cedendo a um torpor insaciável. Sílvia caiu ali mesmo, na varanda, feliz.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

À teia

As mãos cansadas de Henrique procuraram o abajur como se ali, naquele espaço soterrado por sombras e pó, uma luz lhe trouxesse diversão. Não que ele acreditasse que num sótão sem vida estivesse a explicação para suas constantes crises de solidão, mas de alguma maneira ele ao menos se divertia observando generosas teias de aranha espalhadas pelo local.

Depois de tropeçar no último degrau, Henrique sentiu a adrenalina que o corpo injetara para lhe avisar do susto. Enfim se animara com algo. Estava regredindo alguns anos graças ao ânimo que lhe empurrava para garimpar livros e recordações naquele cemitério particular.

Após olhar por horas a fio um álbum de fotos familiares e com isso engolir em seco pensando em como não recebia mais sobrinhos, filhos e irmãos, Henrique olhou diretamente para a estante que se erguia a possíveis dois metros. Dedicou uma quase-reverência à teia que brilhava à sua frente. e em seguida alcançou sua prateleira e finalmente coletou um livro alaranjado que tanto lhe chamara atenção desde que chegara ali.

A edição de A besta humana estava gasta, mas o que vinha à sua memória tinha cheiro de novo. E foi folheando as páginas amareladas que Henrique encontrou um bilhete preservado do mundo e do tempo. Dobrado três vezes, pequeno, simpático. A boca secou quando a letra cursiva se abriu novamente aos seus olhos. Ali estava uma parte de Sílvia, viva, pulsante. Um telefone ao final. Nem lhe passou pela cabeça que os anos haviam afastado os dois jovens e agora cada qual com um parceiro, envelhecia distante de qualquer promessa ingênua de outrora.

Parecia impossível que àquela altura do campeonato alguém atendesse Henrique, mas pelo bem ou pelo mal, uma voz surgiu do outro lado, doce. Henrique demorou um tempo para responder, mas depois perguntou por Sílvia. Ao ser atingido por um inexplicável "É ela", o velho congelou a expressão e desligou o telefone, rindo sozinho e saboreando aquela voz que embora não tivesse soado familiar, também tinha cheiro de novo.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A mais bonita

Quase tropeçou na pedra que se soltava na calçada, mas foi ágil o suficiente para perceber a fenda no chão que se anunciava. Ajeitou os cabelos claros e curtos e olhou para frente. O sol chegava na beirada das quatro da tarde quando Vera olhou seu relógio de pulso vermelho.

Não, solidão, hoje não quero me retocar

Vera imediatamente percebeu que se tratava de sua vida. Afinal, quem mais poderia conversar com ela que não a solidão?

Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas

A rua, à sua frente, repleta de mágoas em seus carros.

Deixo que as águas invadam meu rosto

Vera percebeu que faltava muito tempo pra chegar ao apartamento do tio Henrique. Sair no ponto errado de ônibus custaria uma bolha em seu pequeno pé.

Gosto de me ver chorar

Não, decididamente não gostava de se ver chorando. Será? Repassou em alguns passos a briga com a vó durona, Zélia. Obrigada a devolver a caneta na papelaria, chorara apenas em casa. Sozinha, para si mesma. Realmente, nunca chorara para outra pessoa.

Finjo que estão me vendo

Ninguém a perceberia ali, comum, andando pela calçada.

Eu preciso me mostrar bonita

Vera talvez precisasse estar bonita. O almoço em família lhe exigiria beleza.

Pra que os olhos do meu bem não olhem mais ninguém

Não tinha mais domínio nem sobre seus passos trôpegos pela calçada, que dirá dos olhos de seu bem.

Quando eu me revelar da forma mais bonita

Vera sentiu um baque atingir seu peito com força. Vinha de dentro, mas era concreto, físico. Qual seria sua forma mais bonita?

Pra saber como levar todos os desejos que ele tem

Estava atrasada. Será que o primo Fernando estaria no almoço? O calor embaçou a vista de Vera.

Ao me ver passar bonita

A moça passou por debaixo dos galhos de uma árvore e avistou o prédio, finalmente.

Hoje eu arrasei na casa de espelhos

Aproximou-se da portaria, ciente de que em poucos instantes estaria fadada ao tédio.

Espalho os meus rostos e finjo que finjo que finjo

Qual das Veras tiraria do bolso para apresentar a todos? Companhia invisível? A intragável? Ácida inapropriada?

Que não sei

Vera entrou no prédio, rumo ao seu entrosamento com parentes desconhecidos, sem saber ao certo se deveria mesmo perder mais um dia de sua vida. Respirou fundo e desligou seu rádio portátil.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Amor e desperdício

O carro, parado há mais de dois minutos, meditava junto com Zé. Sem música, sem pensamentos importantes. O vidro meio sujo era o campo de visão do olhar perdido do motorista de cabelos desgrenhados. Uma folha seca planou do lado de fora e se movimentou bruscamente em direção ao vidro da frente, como que manipulada invisivelmente. Só assim Zé percebeu o verde já morto caindo de leve, em direção ao seu carro. Cada vez mais devagar, até que pousou pequena no capô. Buzinas. O sinal estava aberto, e Zé engarrafava a rua. Piscou sério sem o menor constrangimento, ciente de que não havia sido um tempo desperdiçado. O retrovisor, no entanto, denunciou seu olhar assustado com a lembrança que o assaltava como um relâmpago.

Sua boca pressionou a de Vera. Esteve em uma realidade paralela por segundos arrastados, e pensou que jamais sairia dali. Tentou agarrar-se aos braços da magrela garota que o envolvia, mas percebeu que conforme sua excitação aumentava, o tempo se esgotava. Estavam de pé, e agora uma multidão de pessoas empurrava o mais novo casal. Estavam atrapalhando a saída do teatro. Zé piscou sem constrangimento e observou o palco, já vazio. Folhas secas serviam de tapete para duas cadeiras vazias que se encaravam sérias à meia-luz. Zé olhou de volta para o seu lado. Vera não estava mais lá.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Corte

Precisava cortá-lo.

Luís pegou-lhe pela cintura e seu sorriso iluminou a camionete. A caçamba tremia mais e mais conforme o alto Zé dirigia pelas ruas de paralelepípedo, e os altos e baixos ali ao ar livre nem de longe deixavam Betina enjoada. Estava acostumada com os passeios nos arredores da cidade.

Tinha sido a primeira experiência de Betina. O pico afastado, as pessoas reunidas, a fumaça entrando em seu corpo e Luís acariciando-lhe os cabelos levemente enrolados. Voltando, agora, aos solavancos da direção de Zé, decidia se o saldo havia sido positivo. Não, não poderia ter sido melhor. Ainda assim, lançou um olhar de dúvida melancólica a Luís, logo ao seu lado. Os dois se olharam atentamente por alguns minutos que pareceram horas. No fim, o namorado barbudo apenas respondeu, detrás dos óculos redondos: "A vida é uma só, Betina."


Seria a última coisa a ser percebida por aquela garota de então dezessete anos antes de ser arremessada pela batida. Chão, sangue, Luís caído sem sinal algum de vida e um chumaço do próprio cabelo a metros de distância. O corte na cabeça de Betina arrancara sem piedade um turbilhão de emoções que haviam habitado aquele corpo jovem. Nunca mais, estava decidida, deixaria que aquela sensação se apoderasse de sua memória.

As rugas adornavam-lhe a face. Sorriu e recapitulou que precisava aprontar-se para a festa do filho. Fitou o espelho, não ouvia mais nada no salão de beleza. O cabelo ainda lhe lembrava o acidente.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Rúcula salgada

O cheiro do frango invadiu a casa. As mãos finas de Célia retocaram a beleza que faltava nos cílios e aquele corpo estranho e enfeitado rumou à cozinha. No corredor, a mulher olhou os quadros pela enorme parede. Deteve-se ali, contemplando momentos congelados que, pensando bem, ela não queria reviver. "A vida é uma só", dizia a vó Betina. Pois bem, vó Betina. Ali estava vivendo sua única vida. Célia sorridente sobre o cavalo parecia tão feliz que por um momento Célia real desejou colher um pouquinho daquele sorriso. A rúcula! Falta temperar a rúcula!

Célia olhou o relógio dourado no pulso e maquinou que o marido estava a caminho. Revolvendo as folhas da rúcula, contemplou o lindo almoço que pusera à mesa. Ana está dormindo, pensou. Com medo que o almoço esfriasse, a mulher guardou o frango no forno, mas deixou a salada ali na sua frente e pôs-se a admirar o verde que enfeitara com tanto capricho. "Que demora... aconteceu alguma coisa."

Embora pensasse no marido, Célia percebeu que não conseguia sair da mesa, e de jeito algum tirava os olhos da rúcula. Não era tanto a fome, mas a beleza da salada que lhe encantava. Apesar de morta, estava ali, linda e apetitosa. Quando o relógio insinuou uma da tarde, Célia decidiu que era ao menos o momento de forrar o estômago. Espetou um pequeno talo de rúcula e colocou em sua boca. A rúcula estava salgada demais, como estava o casamento. Mastigou com os pensamentos nas tais fotografias. A cada dentada, uma nova foto. Ana nascendo, viagem para a Argentina, a praia.

De repente, Célia sentiu a garganta. Silêncio. Nada mais escutava, apenas sentia que a rúcula fechara-lhe totalmente a respiração. Qualquer movimento se mostrava vão. Célia tentou se mover, os braços dançando no ar, até que caiu no chão, inerte.

A praia estava encantadora. O sol ardia e queimava as costas de Adalberto sem piedade. Ana brincava maluca com castelinhos enormes de areia, enquanto Célia olhava tudo aquilo e já não compreendia o porque de estar casada.

Barulhos de chave e ali estava Adalberto, entrando pela casa. Célia olhou sem esperanças, sentada à mesa. "Oi amor." disse, e seco, passou pela mulher e mal reparou no frango com rúcula que estava à sua espera.

domingo, 10 de maio de 2009