terça-feira, 19 de maio de 2009

Rúcula salgada

O cheiro do frango invadiu a casa. As mãos finas de Célia retocaram a beleza que faltava nos cílios e aquele corpo estranho e enfeitado rumou à cozinha. No corredor, a mulher olhou os quadros pela enorme parede. Deteve-se ali, contemplando momentos congelados que, pensando bem, ela não queria reviver. "A vida é uma só", dizia a vó Betina. Pois bem, vó Betina. Ali estava vivendo sua única vida. Célia sorridente sobre o cavalo parecia tão feliz que por um momento Célia real desejou colher um pouquinho daquele sorriso. A rúcula! Falta temperar a rúcula!

Célia olhou o relógio dourado no pulso e maquinou que o marido estava a caminho. Revolvendo as folhas da rúcula, contemplou o lindo almoço que pusera à mesa. Ana está dormindo, pensou. Com medo que o almoço esfriasse, a mulher guardou o frango no forno, mas deixou a salada ali na sua frente e pôs-se a admirar o verde que enfeitara com tanto capricho. "Que demora... aconteceu alguma coisa."

Embora pensasse no marido, Célia percebeu que não conseguia sair da mesa, e de jeito algum tirava os olhos da rúcula. Não era tanto a fome, mas a beleza da salada que lhe encantava. Apesar de morta, estava ali, linda e apetitosa. Quando o relógio insinuou uma da tarde, Célia decidiu que era ao menos o momento de forrar o estômago. Espetou um pequeno talo de rúcula e colocou em sua boca. A rúcula estava salgada demais, como estava o casamento. Mastigou com os pensamentos nas tais fotografias. A cada dentada, uma nova foto. Ana nascendo, viagem para a Argentina, a praia.

De repente, Célia sentiu a garganta. Silêncio. Nada mais escutava, apenas sentia que a rúcula fechara-lhe totalmente a respiração. Qualquer movimento se mostrava vão. Célia tentou se mover, os braços dançando no ar, até que caiu no chão, inerte.

A praia estava encantadora. O sol ardia e queimava as costas de Adalberto sem piedade. Ana brincava maluca com castelinhos enormes de areia, enquanto Célia olhava tudo aquilo e já não compreendia o porque de estar casada.

Barulhos de chave e ali estava Adalberto, entrando pela casa. Célia olhou sem esperanças, sentada à mesa. "Oi amor." disse, e seco, passou pela mulher e mal reparou no frango com rúcula que estava à sua espera.

5 comentários:

  1. caro Eduardo,parabéns pelos brilhantes contos.Sinceramente,sem confetes desnecessários,são dos melhores que tenho visto pela blogosfera.Goatei muito de seu blog.
    A partir de agora,o sigo com atenção.Grande abraço.
    P.s._Estou linkando você no meu blog.
    Eu a Vanessa do Fio de Ariadne,estamos promovendo uma leitura coletiva de 4 contos.Dê uma olhada no meu blog ou no dela.
    Valeu.

    ResponderExcluir
  2. Adorei seu conto! E obrigada pela visita, volte sempre! :)

    ResponderExcluir
  3. interessante sua ideia dos contos terem fios, nem sempre visiveis, ligando-os.
    Gostei do jeito escreve

    ResponderExcluir
  4. Vi seu post na comu Vera Cruz e fiquei curioso para ler... li esse conto e gostei bastante... Sem muita frescura, vim dizer que continue assim. Passarei a acompanhar, gosto muito de boas leituras! Flw

    ResponderExcluir
  5. Adorei os detalhes do texto...." a salgada rúcula" as lembranças.....

    ResponderExcluir