domingo, 10 de maio de 2009

A pomba

Regina colocou suas lentes de contato verdes e se olhou no espelho. Talvez fosse uma das únicas pessoas no mundo que ousasse esconder íris azuis. Para ela, uma ligação desnecessária com o pai inconsequente. No entanto, aquela mistura de verde e azul causava nas outras pessoas uma fascinação diferente. Realmente Regina provocava um certo encantamento por onde passava, muito embora preferisse fingir que isso não passava de uma impressão.

A caminho do trabalho, Regina pensou no marasmo que seria cuidar de um garoto de quatro anos. Paciência não lhe faltava, mas não era essa a questão. Inclusive talvez fosse a paciência que destruíra boa parte de sua juventude. Paciência para dizer sim, para dizer não. Regina, a paciente. Três degraus separavam-na da entrada do prédio. Subiu no primeiro. Parou no segundo e tropeçou no terceiro, como quem pressente a desgraça.

Uma graça, realmente. O menino bochechudo sorria de suas caras e bocas. Ele parecia estar contente de permanecer ao menos algumas horas longe da mãe carrasca. Regina sorriu ao pensar na lógica capitalista que envolvia a troca de seus sorrisos ao garotinho por alguma quantia de dinheiro. O garoto de repente chorou sem motivos, e não parava de jeito algum. Fez um escândalo de cerca de vinte minutos. Após a criança adormecer inesperadamente, a babá, descabelada, se dirigiu a um canto mais tranquilo para que pudesse ler seus textos da faculdade, ainda que apenas para justificar o investimento. Deparou-se com um texto interessantíssimo, que envolveu a moça de um jeito como há muito não acontecia. Regina olhou o papel xerocado e em seguida olhou de soslaio pela janela do apartamento.

A pomba feia sorriu-lhe e voou até o prédio em frente. Lá, completamente livre e independente, ironizou a situação de Regina e seus olhos verdes. A moça loira deu um sorriso de desgosto e sentiu uma vontade tola de chorar. O vão entre os prédios tornou-se alaranjado com o pôr-do-sol que se anunciava. Era apenas uma vontade de chorar.

A pomba, o texto, a faculdade, o dinheiro, a pomba de novo, o nó na garganta, o barulho na cozinha. BARULHO NA COZINHA.

Regina correu até a cozinha branca e imaculada com desespero. Ali, em cima do balcão, cheio de talheres afiados, o menino seguia sua empreitada de aprender a voar. A moça pulou, agarrando o corpo do garoto e salvando sua própria pele. Permaneceu assim, estática, grudada a ele, por alguns segundos, de olhos fechados. Naquele momento nem quis se perguntar como não percebera que o menino acordara. Apenas pedia um silencioso pedido de desculpas pela irresponsabilidade. Também foi perceber cinco minutos depois o corte na própria mão, feito ao raspar em uma faca que parecia esperá-la pacientemente no balcão da cozinha.

Após receber o dinheiro (em sua opinião indevido) dos pais da criança, Regina entrou no elevador cabisbaixa. Ao alcançar o botão do térreo, paralisou o braço e observou o machucado na mão. A impotência tomou conta de seu corpo e ali ela ficou, sem apertar botão algum. Conseguiu chorar, era a única coisa que precisava. E assim continuou, chorando dentro do elevador, que continuava sendo chamado por pessoas que entravam e saiam, vendo aquela cena incrível que durou quarenta minutos. Um dos moradores, de olhos aguçados, chegou a olhar Regina e seu choro incontrolável no elevador por muito tempo. Pensou em desenhá-la naquele estado mágico, mas ficou com medo de interromper tamanho absurdo. Saiu sem se despedir, embasbacado e de alguma maneira um pouco mais feliz com a própria vida.

Regina desceu os degraus que apresentavam-lhe para a noite e respirou profundamente. Caminhou até o ponto de ônibus e rumou para a faculdade, percebendo a crescente tensão que se instaurava com o incômodo de suas lentes, que já precisavam ser trocadas há um bom tempo.

2 comentários:

  1. Conto massa, narrativa linear. Parabéns, Eduardo. Bigaduuu pela "paradinha" à sombra do PEDEPOESIA...fui>>>>

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  2. belíssimo texto, vivo e intenso.
    parabéns

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