sexta-feira, 8 de maio de 2009

A Teia Azul

A porta bateu. Papéis voavam, folhas enfurecidas formavam lá fora um estonteante redemoinho. A tempestade se anunciava no momento em que Horácio terminava de raspar de seu rosto mais um filete de pelos. O tempo parecia apenas transmitir o estado de espírito daquele homem desgastado e confuso com a última palestra monótona que fizera sobre "a psicologia de Wilhelm Reich".

Na ocasião, uma garota viera até ele, ao fim de sua apresentação, elogiando seu trabalho e seu "poder de síntese", o que provocou um bocejo interno sem tamanho. Nada que sublimasse o interesse por aquela
loirinha graciosa que prolongava o assunto, como quem implora por atenção. Horácio cedeu um pouco de sua paciência adquirida ao longo de seus cinquenta e um anos e resolveu, além de conversar durante um bom tempo, trocar (de maneira inédita) números de telefone. Percebeu os olhos verdes brilharem por um instante e sumirem pelos corredores brancos.

Ao pegar a caneca com chá, Horácio sentiu o vento se aproximar da sala. O vazio de móveis intensificava o frio, e naquele momento o professor percebeu o quão drástica havia sido sua decisão de se mudar de cidade. Ao apostar em ares novos, e, o mais importante, na distância de sua família, ele inevitavelmente decidira por um rumo solitário e restrito àquele rancho localizado numa grande pedra úmida.

A chuva começara, e agora os sons pingavam aos montes na calha antiga. Horácio pegou o celular. Regina, a menina. Regina, a loirinha. Regina, seguida de um número.

O botão que Horácio não apertou permaneceu estático, ignorando sua covardia. Súbito Horácio sentiu o vento atingir em cheio sua racionalidade. Gaguejando, disse à pessoa do outro lado: Alô? Sim, o Horácio, Ah, claro, o professor. Talvez sair, talvez conversar sobre Reich. Não, jamais! Há coisas melhores para se aproveitar na vida.

Sem sinal. Nada que o faça voltar. Horácio deu um salto inesperado e correu. Trombou em três cadeiras antes de encontrar a saída para o seu quintal sem fim. A chuva agora era fina, e ameaçava parar. Pisava trôpego na terra molhada com esperanças de recuperar a voz loira. Andou, percorreu um trecho mais fechado da mata de seu rancho único. Andou até cair a tarde e os zumbidos pós-chuva dos insetos oniscientes tomarem conta do mundo. Nada de voltar. Nada de reiniciar o diálogo que há muito se perdera.

Em meio a um escuro cada vez mais poderoso, Horácio de repente sentiu algo fino e de textura levemente pegajosa em seus braços nus. Sua atenção habitava Regina há mais de hora, por isso sentir o toque daqueles fios trouxe-o de volta a uma realidade mais terrível do que poderia supor. Ao tentar se desvencilhar da armadilha natural porém inapropriada para tamanha carcaça, Horácio complicou sua situação e ficou refém de uma aranha que nem conseguia distinguir naquela escuridão. O celular caiu na lama e acendeu sozinho em função do baque. Agora o quadro era nítido: através da luz azulada, os fios da teia desconhecida pareciam fazer parte do corpo de Horácio, que ficara estático só de pensar na sina de presa que se desenhava no meio do mato.

Duas aranhas deslizaram por um fio e pararam próximas ao rosto de um Horácio inerte. Graciosos, os animais exibiram suas patinhas anoréxicas e sem mais, desapareceram da vista do homem, perambulando conscientes por chumaços de capim. Afastando-se de tal visão horrorosa mas singela, Horácio caminhou sem pensamentos coerentes até sua casa. Regina. A porta bateu.





Um comentário:

  1. Ei, Eduardo , gostei do conceito do seu blog. Adoro contos. E vi no seu perfil que vc gosta de Clarisse e Machado, dois autores que estarão em um evento que acontecerá em breve lá no Fio.

    Abraço

    ResponderExcluir