domingo, 10 de maio de 2009

O retrato

Lápis 6B apontado, Canson amigo. Os traços de Josué se intensificaram quando percebeu um rapaz cujo nariz sangrava. Bela ilustração. No entanto, o seu objeto de estudo saiu repentinamente na estação seguinte. Isso acontecia com frequência. É bom, pensava Josué. Aliar a subjetividade e a técnica à rapidez enfurecida da grande cidade talvez o levasse a atingir uma arte cada vez mais fiel aos seus alvos: pessoas que transitavam insanamente pelo metrô.

Aquele havia sido um dia atípico. Nem sua qualidade metódica conseguira colocá-lo no metrô no horário habitual. Seu prédio estava cada vez mais esquisito. Pessoas chorando pelos elevadores, velhinhas ranzinzas e acompanhantes pagos, zelador e porteiro bem-humorados e cheios de vitalidade. Realmente, o metrô fazia bem a Josué. Passear pelos túneis era sua dose diária de paixão.

Agora quem pedia para ser desenhado era um garoto com o olhar mais triste que Josué já vira em toda sua vida. Sem cabelo algum e expressão pálida, a natureza posta diante de Josué exemplificava a contradição da vida e morte humana. Uma criança entregue a um possível câncer, um mau-gosto divino.

Aquela cena pungente causava um tremor em Josué, que concentrava-se nos traços frágeis do garoto ali, de pé, a próximos três metros do desenhista. A ponta do lápis captava o nariz, a boquinha amarga, mas paralisou nos olhos. Josué seguiu forte, e, confiando na própria capacidade de registrar aquele momento único no espaço de algumas estações, concluiu o retrato mais perfeito que já fizera.

Quando o menino, junto da mãe, saiu do metrô, reservou um olhar de piedade a Josué, que repentinamente sentiu uma necessidade vital de entregar-lhe o desenho que repoduzira com uma rapidez inacreditável. Correu até o menino, que se perdeu na multidão. Achou-o a alguns metros adiante, e seguiu com frieza, até sua casa. Parou na calçada, com o garoto em uma de suas mãos. Sentou-se e olhou o próprio desenho com o auxílio dos últimos raios de sol daquele dia único. De repente visualizou, ali, nos olhos do menino de grafite, a miséria que gostaria de dar de presente. Um retrato fiel, sim, mas de uma situação de morte, de uma história desgraçada e prestes a acabar. Josué rasgou o Canson em três pedaços e foi embora para casa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário