domingo, 10 de maio de 2009

Felicidade

A porta do metrô se abriu e antes de Júlio pisar na plataforma, notou um olhar esquisito de uma moça de lenço na cabeça. Não era só ela. Um velhinho de muletas pareceu indicar algo no próprio nariz. Júlio passou por um pilar espelhado e constatou que sangrava pelo nariz. Subiu as escadas rolantes tentando decifrar mentalmente o que teria ocasionado o rompimento de seus vasos. O tempo estava úmido. Subiu até a rua e caminhou. Olhou a manga de sua jaqueta jeans, levemente manchada de sangue.

Chegou no seu destino de alma limpa, sem qualquer vontade de fazer as habituais perguntas capciosas. Assim que tocou a campainha, percebeu que um gato alaranjado comia o que parecia ser o resto de um pombo no quintal da casa ao lado. A cena carregava um tom de monstruosidade e delicadeza, afinal o felino encarava a refeição como um ritual. Concentrado no pombo, o gato de repente parou e reservou sua linda arrogância à pessoa que abriu a porta a Júlio. Carregada de uma maquiagem barata, Célia cumprimentou o irmão efusivamente.

E assim o rapaz ia entrando no conhecido e antigo lar. Parecia regredir anos a cada contato. Era como se revisitasse a própria vida através das pessoas ali presentes. O tio, vários primos, a avó, o pai aniversariante. Ao cumprimentar o pai, percebeu como seus vinte e oito anos não significavam nada em comparação à vivência que abraçava naquele momento.

A festa, embora plasticamente agradável, repleta de pessoas conhecidas e familiares, evocava algo de soturno. E isso começara a incomodar Júlio no momento em que sua prima, Anete, o encontrara a caminho do banheiro. "Como você está saudável, Júlio!". Aquele fora o início de elogios infindáveis que cada vez mais o intrigavam. Sim, estava limpo, estava saudável, estava incrivelmente feliz. Estava "outra pessoa"? Que tipo de elogio seria aquele? Uma crítica disfarçada de elogio?

Pegando um sanduíche, não foi fácil se desvencilhar da mãe, que insistia em garantir que Júlio estava curado de qualquer coisa. Quando finalmente saiu da casa para respirar algo diferente de cheiro de pessoas, foi ao quintal ver se o gato ainda almoçava. Encontrou somente sua sobrinha Ana, que, entretida com um brinquedinho de montar, se esmerava em colocar peça sobre peça, alcançando alturas cada vez maiores. A mãe observava tudo atenta, e quando resolveu levá-la pra dentro, encontrou muita resistência. "Ela não larga desse brinquedo por nada, acredita, Júlio?". Ao que viu o irmão acenar fragilmente com a cabeça, se dirigiu a ele e jogou em seu colo um "Você tá tão feliz, não é?". Júlio abraçou a irmã, concordando. Ela entrou com Ana em casa e Júlio ficou ali, a admirar a força da palavra feliz.

Realmente, ele estava realizado em ser mais um na família, e assim perder um fardo que lhe atribuía problemas. Era um mérito (ou não?). Passou a mão pela testa. Caminhou até o local em que o gato havia dizimado o pombo. Analisou as penas esbranquiçadas manchadas de sangue, e nesse momento começou a sentir calafrios e um calor interno insuportável. Olhou pela janela da casa e viu o pai recebendo os parabéns. Escuro, velas, palmas. Agora ele compreendia que não podia suportar a felicidade. Não esse tipo de felicidade. Caminhando pela rua que escurecia, pegou o celular. Precisava de suas drogas habituais.

5 comentários:

  1. A gente sempre precisa de algo que nos tire dessa loucura chamada realidade, que tem em si um pouco - talvez só na palavra mesmo - de felicidade.

    obrigado pela visita ;)

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  2. muito bom texto, até me fez viajar para outra realidade.abs

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  3. Oi Eduardo!
    Obrigada por ter visitado NA DANÇA DAS PALAVRAS.
    Agora que encontrei o seu espaço, outras vezes passarei por aqui para ler os seus textos.
    Grande abraço!

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  4. Olá, Eduardo!

    Passei momentos bem agradáveis, lendo seu conto. Gostei muito. É muito complicado viver num mundo de verdades pré-estabelecidas... Voltarei.

    Agradeço sua visita ao Navegando..., mas estou deixando o linque de um outro blogue, que atualizo com mais frequência (uma vez por semana).

    rigoni.wordpress.com

    Bjs e inté!

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  5. gostei muito. taí uma coisa que eu gostaria de fazer, mas ainda não me arrisquei: criar personagens! parabéns, virei mais vezes!

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